Não tivemos muito tempo de sossego após nossa chegada no
Castelo de Langerhan. Nossa primeira manhã acordou serena e graças à isso
pudemos desfrutar por uns instantes da arquitetura mística e misteriosa daquele
monumento: Era como um labirínto psicológico, aqueles que te confundem com
sinais e jogos mentais, e não com charadas ridículas, portas falsas e becos sem
saída. Irônicamente, foi exatamente num canto assim que eu e o meu instrumento
nos encontramos. Ele estava encostado contra a parede na qual pendia um retrato
de um instrumentista da época em que a realeza ainda habitava nesse castelo, um
alaúde. Estava um pouco surrado, obviamente. Parecia ter sido usado décadas
inteiras pelas mãos de um músico que, quando se comparava os desgastes causados
pelo tempo, como umidade e e calor, com aqueles originados pela árdua prática
do instrumento ao manuseá-lo, evidênciava uma extrema suavidade quando tocava
suas melodias.
Eu roubei-o para mim. Meus instinto musicais não se
conteram, e por pouco tempo tive que mantê-lo escondido do resto do batalhão,
que de maneira alguma entenderia um ato desses em meio à guerra. Na verdade foi
bem fácil impedir que a atenção deles se voltasse para os meus atos, pois ao
notar as primeiras marcas de sangue na parede e corpos caindo no chão, percebi
que estávamos sendo atacados.
Minha alma entrou em choque. As lembranças musicais da minha
infância evocadas por aquele instrumento haviam acabado de reviver em mim uma
criança inocente que agora carregava um fuzil em meio à um inferno de explosões
e caos. Entre a tempestade de projéteis, pedaços de construção e sangue eu
corri pelas escadas até meu amigo Barret, que estava em cima do muro interno do
castelo, carregando comigo o alaúde enrolado à trapos. De cima do muro, entre
as fendas das paredes pudemos visualizar a verdadeira sentença do nosso batalhão.
Eu caí no chão e abandonei meu fuzil, entretanto abraçei o
alaúde como se fosse a maior fonte de segurança do momento, e pouco mais me
lembro do que aconteceu em seguida, nada muito além da minha farda cheia de
poeira e sangue e os gritos e estalos das armas de fogo cessando aos poucos. No
fundo podíamos ouvir aquela linguagem desconhecida dos soldados inimigos
berrando ordens e outras manifestações de sentido incompreensível. Haviamos sido
derrotados.
Percebemos muito antes dos nossos colegas que deviamos parar
o combate e nos render. Sem dúvidas foi o certo a se fazer, pois a morte foi o
destino de todos que continuaram
lutando, cegos pelo ódio de estarem perdendo tudo, amigos, famílias, amores, e
agora até a vida, para essa guerra sem sentido.
Barret e eu fizemos tudo que pudemos para nos manter
escondidos dos inimigos, mas de forma ingênua, como avestruzes mantendo a
cabeça enterrada e acreditando que não estavam sendo observados. Quando
retornamos à realidade nos vimos rodeados pelos nossos predadores famintos, os
quais não hesitaram em nos deter. Tentamos nos comunicar com eles a fim de
implorar pela sobrevivência, mas estávamos convencidos de que não nos entenderiam.
Por sorte aquele que aparentava ser o líder deles aproximou-se de nós e mostrou
conhecer nosso idioma: “Venham”.
Seguimos como escravos. Barret levava seu fuzil vazio pendurado
pela bandoleira e eu carregava o alaúde mumificado em meus braços, enquanto os
soldados me olhavam com uma mistura de desprezo, pena e curiosidade envoltos
num ar cômico, como se eu fosse algum tipo de piada mal contada. Aparentemente
devo tudo à aquele instrumento musical, pois graças à aparente piada que eu me
tornei fui deixado de lado, aos cuidados dos subordinados, enquanto o líder
inimigo iniciou o interrogatório com Barret, imaginando que esse teria mais
informações do que eu. Sabíamos que nada adiantaria a tortura, não tinhamos
nada. Nenhuma informação valiosa, nenhuma posição de base secreta, nenhum nome
de comandante ou a data do “nosso” próximo ataque. Para ser bem sincero, eu só
sabia o nome do meu amigo por que pude ver a inscrição na sua coleira, pois
quando eu procurei pela minha, e não encontrei, eu percebi que não lembrava do
meu próprio nome!
A primeira impressão amigável que o líder dos inimigos
passou por conhecer nossa língua logo foi desiludida pela agressividade com que
este começou a berrar e socar Barret. O interrogatório sem sentido continuou
incansávelmente com este suportando todos os golpes graças à sua vontade de
aço. Conseguiu manter a frieza por uma meia-hora. Depois disso o promotor do
terror se cansou e ergueu sua arma para mirar na cabeça de Barret, afirmando
que o mataria. Isso soou como um problema, não era um blefe. Qualquer militar
experiente sabe quando seu interrogado é inútil e sem valor, e além disso,
assistir ao assassinato do meu único parceiro fatalmente me afundaria num
pânico incontrolável no qual eu, se soubesse, entregaria todas as informações
que eu sabia.
Certamente esse seria o começo do pesadelo real, mas de
súbito as coisas tomaram outro rumo. Eu ouvi um som parecido com o de uma
flecha lançada por um nativo norte-americano e de repente todos fomos socados
por uma forte onda de vento em meio aos escombros. Quando um míssel passa ao
seu lado, você não escuta a explosão, apenas o assobio e as paredes se
despedaçando atrás de você. Muitos soldados foram feridos nessa explosão, e
quando abri meus olhos não vi muitas coisas além de muita poeira no ar iluminada
pelo sol, que impossibilitava a visão à longa distância, e aquele grito
ensurdeçedor ainda soando na minha cabeça.
Milagrosamente o alaúde encontrou-se perto de mim e ainda
enrolado em pano, de forma que quando me aproximei para pegá-lo este me mostrou
a saída formada pelo míssel nas paredes que seguiriam meus passos. Corri o
máximo que pude. Em momentos como esse o corpo libera uma quantidade
inimaginável de adrenalina e dopamina, por isso consegui correr uns 5km sem
parar até começar a sentir a dor das minhas lesões.
Longe daquele inferno eu ainda podia ver a fumaça subindo
para o alto. Encontrei abrigo perto de um rio em uma floresta, onde tirei minha
roupa e me banhei. Eu sabia que ia começar a doer muito brevemente, mas agora
eu estava à salvo. Tive um tempo para refletir em tudo que tinha acontecido,
mas não quis lembrar. Em breve a guerra acabaria, já estava destinada, e agora
eu não me importava mais com quem ia sair vitorioso no fim daquela podridão.
Quanto à Barret, bom, não precisava me preocupar. Barret saberia o que fazer.
Não foram poucas as vezes em que ele mostrou ser muito mais hábil do que eu
para lidar com situações complicadas sem se desesperar. Ele sairia vivo.
Eu finalmente desembrulhei o alaúde mágico e pude desfrutar
da essência espiritual encarnada nos simbolos e inscrituras cravadas na sua
antiga madeira, e em seu braço jazia a inscritura do nome do compositor barroco
Dietrich Buxtehude. Agora eu tinha uma nova vida para seguir em frente, novas
terras. As águas do rio trouxeram uma nova razão para a minha existência. Toda
aquela cor em volta, a energia pulsante da natureza, o som da água correndo e
dos pássaros cantando, o musgo crescendo nas pedras do rio, os animais vivendo
harmoniosamente com as plantas, o sol brilhando majestosamente no céu, a
certeza de que a paz sempre prevalece.
Tudo isso começou a fluir em mim e regeneraram cada
partícula do meu ser, e, quando percebi, o alaúde estava também completamente
restaurado pela magia da natureza, e suas cordas prateadas agora ressonavam harmoniosamente
com as vibrações que se continham na calma do ar, aguardando pelo momento em
que minhas mãos finalmente pudessem sentir e reger sua tensão.
Eu sentei, abraçei-o, e comecei a tocar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário